terça-feira, 16 de agosto de 2011

CRIANÇAS INTIMADAS PARA O FRONT

 Reportagem feita por Polliana Milan, do Jornal Gazeta do Povo.

Os paraguaios comemoram hoje o Dia das Crianças. A data se refere aos recrutas infantis que morreram na batalha de Acosta Ñu. 


“As crianças, no fervor da batalha, apavoradas, se agarravam às pernas dos soldados brasileiros, chorando para que não fossem mortas. E eram degoladas no ato.” A frase é uma recordação de um sobrevivente soldado infantil, recrutado pelo Paraguai, para lutar durante a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) e está registrada em documento do Ministério da Defesa. Acredita-se que cerca de 3 mil crianças morreram em combates na Guerra do Paraguai. Elas tinham entre 10 e 14 anos e chegaram a constituir cerca de 50% do Exército paraguaio, principalmente no final da guerra, em uma batalha de nome Acosta Ñu.
            A batalha ocorreu no dia 16 de agosto de 1869 e teve o maior número de baixas no exército. Foi por causa dela que o Paraguai mudou, nos anos 1940, o Dia das Crianças de 13 de maio para 16 de agosto. “O 13 de maio era uma data seguida do Dia da Pátria (14) e do Dia das Mães (15), mas não tinha uma simbologia forte. Quando começa a ditadura militar no Paraguai, se inicia uma proposta de homenagear as crianças que deram o seu próprio sangue pelo país”, afirma a historiadora paraguaia Ana Barreto.
            A mudança de data marca uma posição nacionalista bastante forte no Paraguai que até hoje divide opiniões. As crianças deixaram de ser vistas como mártires de uma guerra injusta e passaram a ser heroínas. “Antes disso, eram raros os livros didáticos que mostravam figuras de crianças portando uma lança na mão e com o uniforme paraguaio todo rasgado”, explica Ana.

Análise
Uma infância mal definida
            Hoje é muito estranho pensar em recrutamento de crianças de 10, 12 anos para o Exército, mas no século 19, durante a Guerra do Paraguai, não havia uma definição exata de onde acabava a infância e começava a juventude. “O marechal [Solano] López entendia que estes jovenzinhos eram homens, por isso decidiu recrutá-los para a guerra”, afirma a historiadora Ana Barreto.
            “Não só no Paraguai, mas no Brasil, Estados Unidos e Europa não era tão raro no século 19 ver crianças de 12 anos indo para a guerra. Isso ficou mais marcado no Paraguai porque lá as crianças foram usadas em escala maior e existem descrições horríveis sobre como elas morreram”, explica o historiador Ricardo Salles, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

História recente
            Crianças paraguaias de 10 a 13 anos foram recrutadas pelo Exército paraguaio até cerca de 1989 e só recentemente essa política foi extinta. Muitos dos que entraram para o Exército, antes da Batalha de Acosta Ñu, tiveram uma preparação para guerrear bastante peculiar.
            López havia instaurado, em 1868, o Tribunal Militar que era responsável por executar as pessoas sentenciadas de morte por traição ao governo. “Estas pessoas não morreram fuziladas, mas por meio de lanças que eram lançadas por estas crianças em treinamento”, explica Ana.
            Para a historiadora, as crianças não são heroínas, continuam sendo mártires. Para o escritor e pesquisador paraguaio Jorge Rubiani “as crianças, assim como os pais delas e toda a população paraguaia, estiveram simplesmente envolvidas no conflito porque a guerra se desenvolveu em território paraguaio e todo o povo ficou envolvido naquele desastre.” “Se sobreviviam, as crianças eram sequestradas por oficiais brasileiros que as levavam para o Brasil para serem vendidas como escravas”, afirma.

Recrutamento
            Inicialmente, Solano López havia decretado um recrutamento em que toda a população masculina deveria servir ao Exército. Só não iriam para a guerra o presidente e os homens do governo civil. “Após o decreto, foi feito um levantamento de quantos homens existiam em cada casa e a idade deles”, diz Ana. Primeiro, o decreto recruta homens entre 18 e 60 anos, mas depois vai baixando a idade para 16, 14, até chegar aos 10 anos.
Não há registros oficiais, segundo os historiadores consultados, de crianças de 6 a 8 anos recrutadas pelo governo, mas é possível que elas tenham ido à guerra para acompanhar os pais. “As famílias não reagiam porque o governo, por meio da imprensa, convence a população de que deveria entregar seus filhos. Além disso, quem se queixava da guerra era preso”, comenta Ana.
            As mães, insatisfeitas com a guerra e sem querer se comprometer oficialmente, chegaram a vestir seus filhos como se fossem meninas. Já as crianças que foram ao combate teriam usado disfarces como barba, para parecerem mais velhas. “Em um relato de Taunay há a afirmação de que os lanceiros brasileiros baixavam as lanças para atingir as crianças e depois os corpos voavam. Eram crianças pequenas e muitas subnutridas”, afirma o historiador Ricardo Salles, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

Recrutamento infantil é um problema mundial
            Infelizmente, o recrutamento de crianças para o Exército, guerrilhas ou milícias é um problema que não ficou no passado. É assim que o professor da Universidade de Brasília Pio Penna Filho, doutor em História das Relações Internacionais, inicia a entrevista. “O problema ficou evidente por causa dos conflitos na África dos anos 90. Temos ainda o caso das Farc na Colômbia e, se quisermos fazer uma análise mais forte e realista, basta olhar para São Paulo e Rio de Janeiro para vermos as crianças envolvidas nas batalhas do tráfico”, afirma.
            Há casos de crianças envolvidas em guerras na América Central, em conflitos asiáticos e no Oriente Médio. A diferença (com relação à Guerra do Paraguai) é que hoje o recrutamento, em grande parte, não é feito pelo governo e não é em grande escala. “Tenho notícias de meninas que são recrutadas à força em alguns países para servirem, muitas vezes, sexualmente a uma determinada guerrilha. Elas eram tatuadas com o nome da guerrilha como se fossem uma propriedade”, explica Penna.
            Em Uganda, na África, há registros ainda de crianças que, à noite, são colocadas na igreja ou em um hospital para evitar que sejam roubadas de dentro da própria casa. “Mas, quando a situação complica, em muitos países africanos as crianças acabam sendo recrutadas pelo próprio governo”, explica Penna.

Criação
            Quando a criança é retirada do berço familiar e levada para combate, ela passa a ver a guerrilha da qual faz parte como a sua família e, depois, segundo Penna, mudar esta situação é muito complicado. “Elas crescem e são ressocializadas dentro destas guerrilhas e depois não conseguem se desvincular”, diz. Penna lembra do caso dos nazistas, que recrutaram crianças na Segunda Guerra, quando já havia o conceito de infância. Elas recebiam medalhas de Hitler após os combates e, quando Hitler se suicidou, a formação ideológica estava tão centrada que milhares de jovens se mataram também.

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