sábado, 20 de março de 2010

Tanto Deus amou o mundo

Ao meditarmos as leituras do Tríduo Pascal, percebemos o sentimento tão humano que se tornou divino e tão divino que se tornou humano: o amor.

Os relatos da Paixão nos remetem aos primeiros dias da Igreja. São as primeiras partes do Evangelho que se formaram na tradição oral e que circulavam entre os cristãos. Nessa fase dominavam os fatos; tudo se resume em dois eventos: morreu – ressuscitou. A fase do simples fato foi, porém, bem cedo superada. Os fiéis se colocaram de imediato a perguntar sobre o significado daqueles fatos, isto é, sobre o porquê da Paixão: “Por que Deus sofreu?” A resposta foi: “Porque Deus nos ama”. Nasce deste modo a fé pascal, expressa na seguinte proposição: “Foi assim que o amor de Deus se manifestou entre nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo, para que tenhamos a vida por meio dele ” (1 Jo 4, 9).

Existiam assim os fatos e também o significado para nós dos fatos. A resposta parecia completa, história e fé formavam finalmente um único mistério pascal. Todavia não atingira ainda o fundo verdadeiro do problema; a pergunta permanecia de uma outra forma: E por que morreu pelos nossos pecados? A resposta que iluminou a Igreja foi: porque nos amava. “Amou-nos e deu-se a si mesmo por nós (Ef 5,2); Amou-me e deu a si mesmo por mim (Gl 2,20); Amou a Igreja e deu a si mesmo por ela ” (Ef 5,25). O evangelista São João, que escreveu depois dos outros, atribui esta revelação ao próprio Jesus terreno quando disse: “Ninguém tem um amor maior do que este: dar a vida pelos próprios amigos. Vós sois meus amigos” (Jo 15,13-14).

Jesus, ao morrer por livre vontade, quis com isso restaurar a beleza original que fora corrompida pelo primeiro pecado, quando nosso primeiro pai, Adão, almejou a divindade de Deus. Assim como no paraíso, o homem comeu o fruto proibido da árvore querendo ser Deus. De tal modo, Jesus Cristo, experimentando a árvore da cruz, assume a humilhação humana e “querendo” deixar de ser Deus, experimenta o caminho do abandono e, por isso, no alto da cruz ele brada: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?” (Sl 22,1).

Com Jesus, Deus não nos fala mais de longe, por meio de intermediários, fala-nos de perto e fala-nos em pessoa, por dentro da nossa condição humana, depois de ter saboreado até ao fundo o sofrimento. O amor se fez carne e veio habitar em nós! Já há quem lia assim Jo 1,14.

O seu amor se fez amizade: “não vos chamei mais servos, mas vos chamei amigos” (Jo 15,15), mas não para aqui; ele chega a uma identificação com o homem, para o qual não bastam mais analogias humanas nem mesmo aquela da mãe, do pai ou do esposo: “Permanecei em mim –diz – e eu em vós” (Jo 15,4).

Finalmente a prova suprema deste amor pode ser sintetizada assim: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1), isto é, até o extremo limite do amor. Duas coisas revelam o amante verdadeiro e o fazem triunfar, a saber: a primeira consiste em fazer o bem ao amado; a segunda, de longe muito superior, consiste no sofrer por ele. Por isso, para dar-nos a prova de seu grande amor, Deus inventa o seu próprio aniquilamento (Kenosis), realiza-o e faz de modo a se tornar capaz de sofrer coisas terríveis. Assim, tudo aquilo suporta, Deus convence os homens do seu extraordinário amor por eles e os atrai novamente a si, eles que fugiram do Senhor bom, crendo ser odiados por ele. Jesus repete a nós aquilo que disse um dia a uma santa: “Não te amei por brincadeira” (Ângela de Foligno).

Para saber quanto Deus nos ama, temos agora um meio simples e seguro: olhar quanto sofreu! Não só no corpo, mas sobretudo na alma, porque a verdadeira Paixão de Jesus é aquela que não se vê e que o faz exclamar no Getsêmani: “A minh’ alma está triste até a morte” (Mc 14, 34). Jesus morreu no seu coração, antes que no seu corpo. Quem pode penetrar o abandono, a tristeza, a angustia d’ alma de Cristo e sentir-se tornado “todo pecado”, Ele o inocentíssimo Filho do Pai? Com razão, a liturgia da Sexta-feira Santa pôs nos lábios de Cristo na cruz aquelas palavras de lamentação: “Povo que ti fiz eu, em que foi que te contristei? Por que a morte me levaste entregando o próprio rei?”

É pensando nesse momento que foram ditas aquelas palavras: “Assim Deus amou o mundo” (Jo 3,16). No início de seu Evangelho João exclama: “Vimos sua glória!” (Jo 1,14). Ao perguntarmos onde ele viu sua glória, a sua resposta seria: “Sobre a cruz vi sua glória!” Porque a glória de Deus está em ter escondido a sua glória para nós, em ter nos amado até o fim. Esta é a glória maior que Deus tem fora de si mesmo, fora da Trindade. Maior de ter nos criado e ter criado o universo. Agora que está à direita do Pai na glória, o corpo de Cristo não conserva mais os sinais e as características da sua condição mortal, pois seu corpo fora divinizado. Uma coisa, porém, permanece ciosamente e mostra a toda corte celeste: “O AMOR É FORTE COMO A MORTE” (Ct8, 6).

Ramires James Moscardo, postulante Capuchinho - Piracicaba - SP





2 comentários:

  1. muito boa sua reflexão... é isso aí, caminhada quaresmal, nosso êxodo ao encontro do Advento, a Palavra de Deus que vem a nós!
    Paz e bem!

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